Este post foi escrito por Tatiana Mendonça
“É como se eu tivesse sido apresentado à minha própria sombra. Agora, me sinto como um pop star, com um guarda-costas me acompanhando”. O artista plástico Ediobaldo Nascimento, 49, o Ed Ragami, ganhou a inseparável companhia durante a Oficina de Teatro de Sombras Contemporâneo, que aconteceu entre os dias 24 e 29 de agosto no Teatro Sesc Senac Pelourinho, em Salvador. Uma das primeiras lições do diretor italiano Fabrizio Montecchi, que ministrou o curso, foi mostrar como o corpo é o primeiro e mais poderoso suporte para a arte.
Durante a oficina, os 20 participantes também investigaram outros elementos básicos do teatro de sombras, como a luz, a tela de projeção e as figuras que dão vida aos personagens. Numa das atividades mais intensas, eles aprenderam a confeccionar e manipular silhuetas. Ed carregava orgulhoso as suas, já pensando no que fazer no futuro com elas. “Como sou professor, penso em levá-las para o universo da escola, para mostrar a força das nossas heranças ancestrais, africana e indígena. Outra ideia que tive é fazer uma exposição de sombras urbanas, explorando prédios e viadutos. A oficina me trouxe essa variedade de possibilidades. Superou minhas expectativas”.
Além das aulas práticas, o curso mostrou um pouco da história do teatro de sombras tradicional e da experiência da companhia italiana Teatro Gioco Vita (TGV), referência mundial em teatro de sombras. Numa aula aberta, Fabrizio, encenador do TGV, exibiu trechos de espetáculos, com variadas técnicas e linguagens, e falou sobre seu processo criativo. “Às vezes, o que parece novo para o público é algo que já utilizei há muito tempo atrás”.
Em seu baú de memórias, Fabrizio pode recorrer a lembranças de mais de quarenta anos de carreira. Para ele, o grande diferencial do TGV é não se restringir à tela, explorando outros espaços cênicos. O grupo apresenta montagens adultas e infantis, sempre respeitando o ritmo da vida de cada texto. “A lentidão também é um ritmo e a velocidade não pode estar para cobrir o nada. Quando a criança vê um vídeo, não se pergunta como se faz aquilo. Já quando vê uma pequena sombra, se pergunta como se faz. Então o espetáculo está também para isso, para despertar perguntas”.
Foi justamente depois de assistir encantada à peça O Pássaro do Sol, do grupo A RODA, e a se perguntar como se fazia aquilo, que a arquiteta Lorena Junqueira, 32, imediatamente interessou-se em participar da Oficina. “É um universo maravilhoso, mágico, e participar do curso foi emocionante”. Ela já pensa em produzir “vários bonecos” e em fazer um teatrinho no aniversário do filho, Vicente. “Eu estava preocupada em como faria isso sozinha, mas vendo as ideias trazidas por Fabrizio, me atentei sobre essa possibilidades de fazer várias figuras em uma só”.
Mesmo quem já trabalha com teatro de animação, como a atriz e produtora cultural Yarasarrath Lyra, impressionou-se com o repertório do diretor italiano. “Fabrizio nos trouxe coisas muito novas, e é muito generoso ao compartilhar seus conhecimentos. Foi uma experiência incrível. Eu nunca tinha trabalhado com sombras e é um universo fantástico, de possibilidades enormes”.
Marcus Sampaio, produtor d’A RODA, ressalta a importância de projetos de manutenção de grupos para a realização de intercâmbios desta natureza. “A formação em animação é escassa e restrita a pouquíssimos cursos espalhados pelo mundo. Trazer esta oficina ao Nordeste do Brasil não foi tarefa fácil e levou anos de negociações, mas todo o esforço se viu recompensado ao ver o encantamento dos participantes com as possibilidades oferecidas pelo teatro de sombras. Nesse sentido, a Fundação Cultural do Estado da Bahia não pode ser esquecida, pois acreditou na proposta formativa do nosso projeto, levando uma oficina internacional dessa magnitude a uma taxa simbólica.”
Após a festiva entrega dos certificados aos participantes, conversamos com Fabrizio sobre suas escolhas artísticas no Teatro Gioco Vita e sobre o lugar ocupado pelo teatro de animação no Brasil e no mundo. Confira a entrevista:
As produções do Teatro Gioco Vita costumam mostrar ao público as técnicas utilizadas para produzir as sombras. As silhuetas e luzes não ficam só atrás das telas. É como se um mágico contasse seus truques à plateia. De onde vem essa opção?
Fabrizio Montecchi – A minha intenção não é de querer mostrar como fazê-lo. Há várias tradições que já fizeram isso, a asiática, por exemplo. Minha intenção é, principalmente, fortalecer o que é o teatro de sombras, porque por tanto tempo foi pensado mais como algo parecido com o cinema que com o teatro. Então, minha intenção é de mostrar tudo o que no teatro de sombras é teatral. E para isso, surge a necessidade de quebrar a superfície plana da tela, para atravessá-la, habitá-la de um lado e do outro, e, portanto, recuperar o espaço tridimensional da cena que pertencia à cultura ocidental, devolvendo ao teatro de sombras elementos desta “teatralidade”, que é ocidental, e na qual a sombra é bem-vinda, mais que em outras áreas. Pois há uma espécie de conflito entre a cultura ocidental e a sombra. Vencer essa batalha é importante.
Qual é o lugar do teatro de animação e particularmente do teatro de sombras hoje no mundo, em relação a outros fazeres teatrais e também em relação ao público?
FM – Eu acho, e não quero ser demasiado otimista, que nunca foi tão bom. Cada país teve suas tradições de teatro de animação. No entanto, elas sempre foram áreas muito distintas do teatro oficial. Agora, começam a aparecer interseções. Embora ainda precise fazer mais nesta direção, eu ainda acho que o teatro de sombras está ganhando uma relevância que nunca teve antes. Então, embora o teatro de sombras permaneça pouco utilizado, nunca foi tão utilizado quanto agora. Depende se queremos ver o copo meio vazio ou meio cheio. Antes, o teatro de sombras tinha seu lugar apenas na Ásia, um pouco na Europa, agora, em todos os continentes é uma prática, e existe um teatro contemporâneo. Isso significa que o teatro de sombras foi capaz de superar as barreiras entre um país e outro, de conversar com várias culturas e este é, em suma, o resultado de todo o trabalho que vem sendo feito e é um bom resultado. Espero que seja sempre melhor, mas, por enquanto é positivo.
O Teatro Gioco Vita conta hoje com apoio do estado. Qual é a importância dessa política para manter as pesquisas e produções do grupo?
FM – Eu sempre digo que para continuar a ser nós mesmos, precisamos mudar. Ao longo dos anos, Gioco Vita mudou muito. Primeiro, foi uma pequena companhia, depois começou a ter os teatros, então, essa atividade se tornou muito importante. Trata-se de um processo contínuo de preparação à mudança. Temos financiamento do Governo, do Estado e da Prefeitura. Mas não é só isso. A questão é saber se renovar e ser sempre motivados, pois quarenta anos são muitos, muitos, muitos… É muito tempo. Portanto, temos que estar sempre em alerta, prontos para a mudança, pois fossilizar-se é o fim, significa morrer.
Como o senhor se encontrou pessoalmente com o teatro de sombras?
FM – Não o escolhi, o teatro de sombras que me escolheu. No começo, eu não era plenamente consciente do que estava fazendo, era muito jovem e imaturo. O tempo passou e agora percebo que não poderia falar sobre o mundo de outra forma senão através das sombras. Então, comecei a me perguntar o porquê e as respostas estão todas na qualidade do teatro de sombras que comunica sem alguma imposição. Em um mundo onde todas as imagens são violentas, violentas também quando não há violencia, pois as imagens são sempre impostas de alguma forma, o teatro de sombras sugere, interpreta. Eu sempre digo que é uma janela através da qual todos podemos ver o que queremos, é um espaço de liberdade. Costumo dizer que o teatro de sombras é uma espécie de ecologia da visão, pois há na sombra uma hipo-informação que permite a cada um ser ainda mais presente do ponto de vista da percepção.
Como foi a experiência de ministrar essa oficina em Salvador?
FM – Foi muito boa. Tivemos um belo grupo, com uma boa energia, sempre muito interesse. Há alguns países no mundo onde sinto um amor particular pelo meu trabalho e pelo teatro de sombras, e um desses é o Brasil. Aqui há uma curiosidade, um interesse que eu não sinto em outros países. Mesmo na Europa, há alguns países onde o teatro de sombras é bem sucedido, e outros que não têm nenhum feeling com o teatro de sombras. Ao contrário, aqui sinto este feeling desde sempre. Fiz uma das minhas primeiras oficinas internacionais em Arcozelo, perto do Rio de Janeiro. A oficina foi organizada pela Funarte, no começo da década de 90 e, a partir deste momento, foi um amor sem interrupção. Nas minhas oficinas na Europa, sempre tiveram alunos brasileiros. Já fiz 3 oficinas no Brasil e nenhum na Itália! Em suma, tenho uma linda relação com o Brasil.