Quando se fala em teatro de bonecos, muita gente pensa logo em fantoches. Pois em quase vinte anos de existência, a companhia A RODA nunca tinha conversado com eles pessoalmente. Andou por outros rumos — manipulação direta sobre balcão, teatro de Caixa Lambe-lambe, sombras —, mas agora se pôs a investigar os bonecos de luva, realizando um desejo antigo.
A iniciativa partiu de Marcus Sampaio, produtor do grupo e colecionador de bonecos antigos de várias partes do mundo. Ele conta que uma das motivações para o mergulho nesta nova técnica foram os bonecos de luva do Nordeste, que têm no mamulengo de Recife as suas figuras mais conhecidas.
No ano passado, essa manifestação foi reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural do Brasil. “Apesar de nossa proposta ser muito distinta desse teatro de bonecos popular tradicional nordestino, eles sempre foram uma fonte de inspiração para nós”, diz Marcus.
Outro atrativo da técnica é a possibilidade de ampliar o acesso à produção teatral do grupo, já que estas montagens não precisam da estrutura física de um teatro, facilitando a circulação entre diferentes públicos.
Olga Gómez, diretora artística da companhia, confessa que no começo duvidou um pouco da ideia. “Respeito e admiro a técnica desde sempre, mas ela inclui novos desafios, como a fala dos personagens, por exemplo”. Vencida a pequena resistência inicial, os bonecos de luva começaram a ganhar forma pelas mãos de Olga, com uma ajudinha dos fantoches chineses da coleção de Marcus. Se eles foram úteis inicialmente para resolver dificuldades de manipulação, do outro lado era o abismo de como resolver a fala dos personagens. “O trabalho com arte é sempre um salto no vazio”, conta Olga.
Com os bonecos prontos, faltava dar-lhes vida. Em janeiro de 2016, a pesquisa com a nova linguagem tomou corpo no galpão da companhia com o programa de estágio da segunda edição Madeira Viva — projeto de manutenção de grupo financiado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Fuceb). Os encontros acontecem todos os dias da semana, por um período de quatro horas. Durante as manhãs, há atividades de preparação corporal e vocal, exercícios de manipulação, jogos cênicos para encenação do texto, entre outros recursos.
Seis pessoas participam do atual programa de estágio da companhia. Uma delas é Nara Santos, que conheceu A RODA por meio da amiga Nairara Gramacho, também integrante do programa. Ela aceitou o convite para participar de uma oficina de bonecos realizada em 2012. “Na primeira reunião, fiquei encantada. Não só pelos bonecos, que são belos e originais, mas também pelas ideias e intenções inspiradoras de Olga”.
Um tempo depois, Nara participou do estágio da primeira edição do Madeira Viva, quando aprendeu a manipular bonecos de madeira e figuras de sombra. Desde fevereiro deste ano, ela frequenta o programa direcionado à manipulação dos bonecos de luva. Nara está gostando de estudar suas capacidades e limites. “Minha expectativa é de aprender a manipular os bonecos de maneira que minhas intenções sejam passadas para o público, dando-lhes algo em que pensar, uma indagação, uma inquietude”.
A caçula do programa de estágio é Janaína França, que participa do grupo há dois meses. Ela está encantada com a experiência. “Tudo é muito maravilhoso e novo para mim. Primeiro passei a ter uma consciência corporal diferente de tudo que estava acostumada. Como o trabalho é dar vida aos bonecos, a sensação que tenho é que desenvolvi um cérebro em cada mão e esses cérebros funcionam em sintonia com meu corpo”.
A pesquisa e atividades desenvolvidas no programa pela trupe devem se transformar em um espetáculo. Para o segundo semestre deste ano, já estão previstas apresentações em escolas da montagem “em construção” que terá como inspiração a vida de Luiz Gama, notável mulato baiano que, com muita determinação, venceu os obstáculos da escravidão e batalhou pela liberdade dos negros.